Também, como vós, gosto dos cinzentos. Isto é, percebem-me, também a mim a bruma me embriaga. Não creio que estejam assim tão sozinhos: falamos a mesma língua, sofremos de paixão, comemos chocolates, fugimos com os olhos quando nos apanham a olhá-los, e etc. Dizia: os cinzentos. Parece-vos a vós que só neles, nos cinzentos, só nela, na bruma que embriaga, sentimos inteiro o sangue a pulsar nas artérias
(quais é que são as azuis, as salientes, as dos braços?)
a pulsar nas veias - isto é como quem vos pergunta se a vós vos parece que aquela linha de que vos falei
(não falei? É muito simples: trata-se de uma linha que)
só é realmente perceptível nos cinzentos? Às vezes grossa, cheia, às vezes fina e seca, consoante não sei bem o quê, uma linha a que os dias à nossa volta se parecem quando não usamos relógio no pulso? Pois a mim também. Aborrece-me o concreto: as certezas foram feitas para que as afoguemos em cerveja ou para que as queimemos numa mortalha. Tenho a certeza. E bem reparam que falo das duas mortes mais terríveis que podemos desejar a alguém
(alguém alguma vez desejou a morte a alguém?)
isto é pela água ou pelo fogo. Mas voltando à terra, fiquei com ar de nada quando do nada vos voltei a ver
- Tinha a certeza que te ia encontrar
mas já lá chego. Podia contar-vos das vezes em que ali passo, do mijo que ali faço, das vozes que embaraço quando sinto a cidade adormecer sobre si mesma, esgotada (Lisboa sofre de insónia), puta, e me detenho sobre a montra dos mendigos com ganas de aconchegar uma nota de vinte no edredão de cartão do mais miserável deles, acabando sempre por não o fazer, assinando em vez
VAGABUNDO
no orvalho das portinholas para que me sintas pela manhã. Houvesse ainda corvos nas colinas, nem caridade nem amor seriam necessários. (Já vos disse que o amor é sobrevalorizado?)
Dizia: os cinzentos, gosto deles. Ouvi-vos concordar comigo: não há plenitude na completude de uma cor primária; um constante cinzento anestésico, sem certezas nem relógio de pulso, eis o que nos empurra. Os quase-quase, as traições, os ilusionistas de bairro, as paixões platónicas por correspondência: amo-os a todos com um amor (quase) irrevogável. Que, como creio haver dito, é sobrevalorizado.
Mas esta merda cansa,
nome de rapariga,
e a gente cresce,
e a gente fode
e a gente morre.
Como já deves ter reparado trato-vos por vós, não por tu. Por educação (a minha avó que me veja escrever assim), por pudor, por prazer talvez: pelo amor (quase) incondicional (que cansa) do cinzento. Tal como por amor do cinzento vos ouvi dizer
- Tinha a certeza que te ia encontrar
quando podias muito bem ter dito
- Vem deitar-te na minha cama.
Se nos virmos por aí, convidem-me para dançar. Pode ser que me não desculpe nos meus pés de chumbo (densa afinidade metálica com o pesado coração - que em tempos leve, de latão) e que as voltas dos meus passos não vos vão acordar.
O que ele queria mesmo era fazer peças de teatro sobre peças de fruta.
16.2.09
Voar sem collants
Sessão compota
- 28 a caminho de Montauk
- A Navalha
- Açúcar com Chá
- And The Leftovers
- Aquele Caderno Preto
- Avião de Papel
- Criatura
- Dor de crescimento
- É tarde, Maria
- Meia página
- Míssil Supersónico de Destruição
- O Fabuloso Destino de Juli
- O Gattopardo
- O Melhor Amigo
- O Mito do Celofane
- Oportunidade de Carreira
- Palabras sem peruca
- Pudim Royal
- Pés Descalços
- Sim
- Trama
- Vinte e três
- Virado ao Contrário
Compasso a passo
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6 comentários:
A minha mente, demasiado cinzenta e quadradona, tem alguma dificuldade em entender a tua escrita na sua plenitude.
Malgré ça, gostei muito de te reler e de te ver voltar em grande forma!
isto está mesmo bom, behran. mesmo.
porra que escreves bem como tudo
Tás cada vez melhor... Esta tua riqueza embasbacante vai-se superando ao longo dos anos.
És o maravilhoso homónimo.
És cinzento, mas para mim tens cor =) beijo grande
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