O que ele queria mesmo era fazer peças de teatro sobre peças de fruta.

16.2.09

Boa-noite aos corvos

Também, como vós, gosto dos cinzentos. Isto é, percebem-me, também a mim a bruma me embriaga. Não creio que estejam assim tão sozinhos: falamos a mesma língua, sofremos de paixão, comemos chocolates, fugimos com os olhos quando nos apanham a olhá-los, e etc. Dizia: os cinzentos. Parece-vos a vós que só neles, nos cinzentos, só nela, na bruma que embriaga, sentimos inteiro o sangue a pulsar nas artérias
(quais é que são as azuis, as salientes, as dos braços?)
a pulsar nas veias - isto é como quem vos pergunta se a vós vos parece que aquela linha de que vos falei
(não falei? É muito simples: trata-se de uma linha que)
só é realmente perceptível nos cinzentos? Às vezes grossa, cheia, às vezes fina e seca, consoante não sei bem o quê, uma linha a que os dias à nossa volta se parecem quando não usamos relógio no pulso? Pois a mim também. Aborrece-me o concreto: as certezas foram feitas para que as afoguemos em cerveja ou para que as queimemos numa mortalha. Tenho a certeza. E bem reparam que falo das duas mortes mais terríveis que podemos desejar a alguém
(alguém alguma vez desejou a morte a alguém?)
isto é pela água ou pelo fogo. Mas voltando à terra, fiquei com ar de nada quando do nada vos voltei a ver
- Tinha a certeza que te ia encontrar
mas já lá chego. Podia contar-vos das vezes em que ali passo, do mijo que ali faço, das vozes que embaraço quando sinto a cidade adormecer sobre si mesma, esgotada (Lisboa sofre de insónia), puta, e me detenho sobre a montra dos mendigos com ganas de aconchegar uma nota de vinte no edredão de cartão do mais miserável deles, acabando sempre por não o fazer, assinando em vez
VAGABUNDO
no orvalho das portinholas para que me sintas pela manhã. Houvesse ainda corvos nas colinas, nem caridade nem amor seriam necessários. (Já vos disse que o amor é sobrevalorizado?)
Dizia: os cinzentos, gosto deles. Ouvi-vos concordar comigo: não há plenitude na completude de uma cor primária; um constante cinzento anestésico, sem certezas nem relógio de pulso, eis o que nos empurra. Os quase-quase, as traições, os ilusionistas de bairro, as paixões platónicas por correspondência: amo-os a todos com um amor (quase) irrevogável. Que, como creio haver dito, é sobrevalorizado.
Mas esta merda cansa,
nome de rapariga,
e a gente cresce,
e a gente fode
e a gente morre.

Como já deves ter reparado trato-vos por vós, não por tu. Por educação (a minha avó que me veja escrever assim), por pudor, por prazer talvez: pelo amor (quase) incondicional (que cansa) do cinzento. Tal como por amor do cinzento vos ouvi dizer
- Tinha a certeza que te ia encontrar
quando podias muito bem ter dito
- Vem deitar-te na minha cama.

Se nos virmos por aí, convidem-me para dançar. Pode ser que me não desculpe nos meus pés de chumbo (densa afinidade metálica com o pesado coração - que em tempos leve, de latão) e que as voltas dos meus passos não vos vão acordar.

6 comentários:

Anónimo disse...

A minha mente, demasiado cinzenta e quadradona, tem alguma dificuldade em entender a tua escrita na sua plenitude.
Malgré ça, gostei muito de te reler e de te ver voltar em grande forma!

Anónimo disse...

isto está mesmo bom, behran. mesmo.

M. disse...

porra que escreves bem como tudo

Anónimo disse...

Tás cada vez melhor... Esta tua riqueza embasbacante vai-se superando ao longo dos anos.

J.MARTINS disse...

És o maravilhoso homónimo.

Sofia Paixão disse...

És cinzento, mas para mim tens cor =) beijo grande

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