O que ele queria mesmo era fazer peças de teatro sobre peças de fruta.

10.12.08

Na vasa da mala

Por cada palavra que escrevo um flamingo parte a perna de apoio na lama da savana. Vinte e duas fracturas expostas cor-de-rosa
(que se foda o acordo ortográfico, cor-de-rosa tem mais de corderrosa que de cor de rosa - e quem não é desta-opinião pega-de-empurrão).
Dizia, a cada palavra que escrevo não só a savana perde cor: é o meu filho que de dia para dia mais monocromático, é o sol da minha guitarra que a cada dia mais grave. É como dar um tiro no pé e gabar a pontaria
- Aha! Brutal! O sangue na falange!
ou como ter insónias há três meses e não deixar de beber seis taças de café forte por dia, fora as bicas, que são gomas de chicória inventadas para disfarçar o hálito a beata e tingir os dentes de vida. Tentei guardar os versos para mim, praticar a abstinência e arquivá-los, mas eles eram-me de tal modo medonhos que só esta página, que é página pública e
desquadriculada
desquadricularizada
desquadricularizacionada
desquadricularizacionamentada
desquadricularizacionamentizada
desquadricularizacionamentalizada
desquadricularizacionamentalizacionada
os salvaria do ridículo:

houve tempos em que a banda,
houve livros e o vinho e o amigo feliz
prometendo mais dele que dele
prometesse
e o chocolate que trazia no bolso
para não adormecer,
o chocolate e eu, na
noite branca que a luz escurecera

e enfim mazurcas e valsas
um dois hup,
um dois hup!
e as noites frias a aquecerem
no momento em que tremeste

é muito fácil despir-me,
zufa! sem camisa
zás! braguilha e botão
sem som na palma da mão
e estou de cuecas.
Não ter ninguém que assim me veja porém
é menos triste que não entender o barulho que
a minha alma e braguilha
não fazem mais.
Depois dizem-me que tenho uma filha,
Depois dizem-me que não existo.

Nos meus sonhos assalto bancos, e faço-o com tal brio que jamais sou apanhado: são as sereias dos carros-patrulha a silenciar a cidade e eu fumando um cigarro nas escadas do tribunal
- Foram para ali, senhor guarda!
tranquilo porque o meu melhor amigo baleado nas têmporas não haveria de ser delator. Chegasse o buliço da aurora, desenterraria o saco do dinheiro entre o salgueiro e o jacarandá e voltaria à estrada, que numa casa incendiada já não daria para viver. Se não fodesse tudo à minha volta talvez não precisasse de viajar.
Nas minhas insónias penso em vocês. Menos em ti, que és desinteressante.
Estão convidados para a minha festa. O rendez-vous é amanhã: o mestre faz cem anos, o outro faz vinte e dois.
Denny Crane.
Quase vinte e três.
Denny Crane.

5 comentários:

MPimentel disse...

Pena uma mãe não poder ser flamingo (do mal o menos: também não tenho que expôr as minhas fracturas cor-de-rosa) e ler ao ouvido, todos os fins-de-dia, as tuas palavras desquadricularizadas. Bendita "mad cow"! DENNY CRANE!

Carol disse...

Outro "anamagramana": "vasala da mana". Que, no fundo, à partida e em termos de, em concreto, pois que não é nada... mas diz mana e portantoooo, de maneiras que... Sim senhor...! Não achas?

Adorei! És bom bolas!

pai disse...

Que esta veia literária não te faça esquecer o talento jurídico para acabar o curso...
É sempre muito bom ler-te, mesmo quando (ou talvez sobretudo porque) aquilo que escreves não é inteiramente perceptível à primeira, segunda ou terceira leituras, deixando um rasto de poesia, mistério e non sense...

Bernie disse...

És quase tão bom a inventar palavras como o controlador de spam dos comentários. A palavra-chave de hoje é "crondedo". Fazes melhor?

Muitos parabéns, pá! Não sabendo o que queres fazer na vida, já fizeste bastante.

M. disse...

que o talento jurídico te deixe sempre anagramar assim. e escrever tão mas tão bem assado.

Enviar um comentário